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A Faculdade de Letras de Lisboa, seguindo o rasto de todas as outras faculdades nacionais, costuma elevar-se aos céus por não valer quase nada. No entanto, essa mesma faculdade possui uma biblioteca pela qual vale a pena passar e perder tempo. Há uns dias, numa procura sem nexo, dei com um exemplar do número 62 da revista LER (2004). Comecei a desfolhar. Um artigo de Gerd Hammer sobre Robert Walser. Li e gostei. Fiquei a saber, por exemplo, que Walser não deixou de escrever por acaso. Não. Só em 1933, quando foi transferido para o hospício de Herisau contra a sua vontade, é que Walser parou de escrever. Faltava-lhe a liberdade necessária para a escrita. Mais à frente na revista, encontrei uns microgramas inéditos do mesmo autor. Fiquei particularmente entusiasmado com um:
Presentemente cumprimento uma rapariga, que vejo todos os dias, de forma muito singular, não inclinando a cabeça, mas sim levantando-a, tal como fazem os soldados na presença dos superiores. A rapariga já ficou bastante desconfiada. Que olhar sério lhe lanço sempre! Estremece, quando a cumprimento, foge, como se tivesse receio. Só a ela dirijo este tipo de cumprimento orgulhoso, verdadeiramente grandioso. Que significa isto? Vou dizê-lo. Ela trabalha numa livraria, livraria editora, e através dela cumprimento a minha profissão. Cumprimento todas as obras intelectuais que se encontram na livraria dela e em todas as outras livrarias. Nunca ninguém cumprimentou de forma tão desafiadora, tão grandiosa. Ela mal se atreve a olhar-me, o meu cumprimentou tornou-a muito tímida, mas isso não importa. Em todo o caso tive um efeito sobre ela, toal como os poetas têm um efeito sobre os leitores. Ela não me compreene bem, isso explica-se facilmente. Como é que ela pode pensar que com o meu cumprimento especial pretendo respeitar-me a mim próprio. Há cumprimentos muito irreflectidos, mas também os há muito conscientes! Será que atormento a rapariga? E se atormentar! Assim fica a saber uma vez na vida como é que se comportam os escritores que não se esquecem do seu valor.
Juro que, na primeira apresentação de um livro meu, levarei esta pequena história comigo. Nem que seja pela dignidade.