domingo, 5 de abril de 2009

A Prisão do Ético


EU DESCONHECIDO

Um poema: Paul Valéry. Nem todos os homens com nome de génio têm direito a alcançar o estatuto de divindade, no entanto, quem diz que temos de entrar em nós próprios armados até aos dentes não precisa de alcançar seja o que for, uma vez que já possui o movimento característico da poesia dentro de si.

Os homens vivem e morrem a pensar em tarefas que ficaram por cumprir, mas a poesia, essa, tem apenas a ver com a contemplação. A poesia não é construída a partir de sonhos ou de ideias que tenham em vista um objectivo.

O poeta não é aquele que escreve em verso e que constrói rimas com florete; a poesia não é apenas contestação, revolução, rosas e riachos. Nem é apenas métrica ou fonética. Não. Poesia é isto: criar uma espécie de angústia para a resolver. Ou isto: estás cheio de segredos a quem chamas EU. És voz do teu desconhecido.

O verso pouco interessa quando a música não está alinhada com o bailado. Mas nada disso interessa perante a inevitável musicalidade de Paul Valéry, poema, poeta e compositor, que fazia dos dias e dos pensamentos do senhor “Teste” verdadeiras partituras.



A LINHA RECTA

Uma bala: a linha recta.
Podes não ter confiança no teu próprio corpo.
Podes precisar de andar às cambalhotas e aos tropeções. Mas nunca desconfies da direcção que uma bala leva: se ela for apontada ao teu coração,
é o teu coração que sairá perfurado.
A linha recta é inimiga da espécie: procura o movimento que se encontra nas curvas, isto se quiseres sobreviver ao «clic» do gatilho.


Bloch

Duas crianças incendiaram o corpo de um mendigo e, durante sete dias, alimentaram o fogo a gasolina e a petróleo. Dir-se-ia que, em pouco menos de uma semana, duas crianças fundaram uma nova religião.


Berthold

Berthold nunca lia um livro por completo. Um dia, quando finalmente conheceu o final de uma estória, assustou-se.


Eva

Uma senhora velha queria voltar a ser bela e jovem. Arrancou os dentes ao seu cão e com eles fez um fio. Embora tenha continuado velha, a senhora ficou estranhamente bonita.


- Paulo Rodrigues Ferreira, A Prisão do Ético