Eu sei quem é o enforcado. O enforcado sou eu. Eu, sempre nos mesmos sítios, sempre à espera. O que não daria para deixar de esperar. Quero acabar com tudo. Com as esperas, com a ansiedade, com as expectativas, com o futuro, com o passado. Ficar deitado na cama à espera que o optimismo se desvaneça até se transformar em carvão. Pedaço negro de bosta. A cara peçonhenta na banheira a afundar-se como o navio roto no fundo. A corda à volta do pescoço. A apertar. Faz força na veia que salta, que dá pulos à superfície da pele. Reverdece. Fortifica. Revigora. Avigora. Cobre de verde. Veste a carapaça e sai à rua, faz o sorriso, olá como está, tudo bem, sim senhor, adoro-o do fundo do coração, mas estou a pensar que o odeio mais do que tudo, quero partir-lhe a tromba, tromba não, que é feio e não se diz, desculpe por odiá-lo a si e ao resto da humanidade. Veste a carapaça da tartaruga e vai, corre, conduz pela noite fora. É uma piada falares no enforcado, mas eu sei quem ele é. Sou eu. Piso o cadafalso. Vejo os meus entes queridos. Onde estão? Não os vejo bem. A transpiração desce-me pela testa, cega-me, salga-me as beiças. Faz o sorriso para a multidão que se despede. Diz adeus. Adeus, até à próxima, amo-os tanto. Falo demais. Piso o cadafalso, tento rir para os familiares, para os amigos. Onde estão, que não conheço ninguém? Multidão anónima a olhar para um fantasma. A corda, aperte-a carrasco, atire-me para um mundo distante que nada se assemelhe com este, livre-me de todo o mal, de toda a culpa e de toda a tristeza. Principalmente, desta última. Não aguento mais a carapaça, tem muito peso. Faz ferida nos ombros fingir que se é quem não se pode ser. Uma menina muito pequenina acena-me com a mão. Como lhe responderei? Faço o mesmo. A minha mão despede-se dela. Ela chora, coitada, ainda não compreendeu que não vale a pena recorrer às lágrimas quando se trata de castigar um criminoso. Xerife, faça a sua função, dê a ordem de partida. Anseio pela corda. Dê cabo de mim. Parta-me aos pedaços. Não chores, menina, nada disto vale mesmo a pena, é tudo muito complicado, sofremos uns com os outros desnecessariamente, não me faças sofrer também, quero partir livre de todos os vícios mundanos. Adeus, minha pequena, cuida desses adultos que te rodeiam, que se dizem meus amigos, meus familiares, diz que sempre os odiei do fundo do coração, que só não os mato por mera fraqueza. Diz-lhes que cada hora que gastei neste planeta me trouxe um sofrimento colossal. Uma piada. Diz-lhes que foi tudo uma graçola seca. Eu sei quem é o enforcado.