Ainda não havia desejo dentro de nós mas já queríamos ver raparigas. Tu fazias as palhaçadas, eu era mais de ficar corado. A vergonha dominava-me. O que era confuso. Por um lado, a vontade de vê-las era tanta que não conseguia deixar de te acompanhar nas correrias. Por outro, a timidez impedia-me de comunicar. Tu, meu amigo, fizeste-me persegui-las mas não me ensinaste a encantá-las. Elas achavam-me muito aborrecido. Havia uma que me apelidava, muito carinhosamente, de deficiente. Na esperança de levares um beijinho, aproveitavas o riso delas para gozares comigo. Não tínhamos desejo mas já fazíamos tudo mal. Eras mais velho mas só me ensinaste a ser curioso. A timidez ainda me persegue. Continuo a corar nos momentos em que devia agir. As meninas achavam-me deficiente e tu aproveitavas para ficares com a coroa. Eras visto como um rei e eu como um mero acompanhante. Aceitava a tua vitória para não me conhecerem a voz. Montado na bicicleta, apostaste que chegarias primeiro que eu ao destino. Quis ganhar, pedalei com a máxima força, mas caí. Não sabes o que custou levantar-me com tantas raparigas a olharem. Queria chegar em primeiro lugar à meta, vencer, impressionar aquela que julgava ser a mais bela de todas, mas apenas fiz má figura. As tuas gargalhadas feriam-me. Na tua condição de amigo mais velho, deverias proteger-me. Preferiste pôr-te do lado de quem me humilhava. Eu era o anormal que, para além de não falar, ainda empanava rodas de bicicleta. Deitava-me cabisbaixo para que brilhasses na rua. Nunca te falei do desapontamento que me fazias sentir. A tua amizade era mais importante do que qualquer risada de menina. O que eu desejava era apanhar sapos no rio, estragar o quintal do vizinho com os botins, roubar fruta em propriedade alheia, partir os vidros da escola primária à pedrada. Quando rapaste o cabelo, imitei-te. Fui a tua única visita quando apanhaste varicela. Entrei a sério na aventura da amizade.