sexta-feira, 31 de julho de 2009

Renega o presente


I can’t do well when I think you’re gonna leave me, but I know I try
Are you gonna leave me now

- Empire of the Sun,
We are the People

Agarro o morto pelo braço e penso: «Continuarei a fingir que aguento uma tonelada às costas. Aprenderei truques de magia que me metam num avião para a minha terra.»

Caminho por entre os mortos concentrado num tempo antigo: «Houve uma tarde em que me disseste que tinha um sorriso bonito. Aconselhaste-me a rir mais vezes. Eu agradeci e afirmei que não sabia rir, que era feio, muito feio, e idiota. Tu gozaste. Estava a ser parvo. Querendo que tivesses pena, disse que não tinha amigos. Beijaste-me. Sorri novamente e aplaudiste. A partir daí, foi sempre a descer. Não me voltaram a elogiar o sorriso. Nunca mais me elogiaram de modo nenhum. Mudei de penteado, conheci novas caras, fingi simpatia quando não a tinha, tudo para receber elogios. Mas não me elogiaram e deixei de acreditar em ti. O meu sorriso é palerma, desfigura-me. Recordas-te do empregado que te respondia mal por seres simpática e que me venerou por tê-lo humilhado? O meu sorriso não dá fruto. Só a seriedade. E tu não estás comigo. Se fizer um sorriso enquanto me observo ao espelho, lembrar-me-ei das tuas palavras e da cara e das roupas e dos lábios e da língua e da saliva que acompanhavam essas mesmas palavras. Não voltaram a encontrar virtudes em mim. Tento obedecer às ordens que recebo. Calo-me quando considero inoportuna a presença da minha voz (sempre). Ainda assim, atiram-me pedras. Não digo que me crucificam porque não valho tanto. Tu elogiavas-me. Ficarias dois séculos no meu quarto. Daríamos a volta ao mundo em balão. Prometíamos muito um ao outro. E eu sabia que havia qualquer coisa que me alertava para a proximidade da tragédia. Não te recriminarei se me tiveres esquecido. Fui eu quem fugiu. Procurar-te-ei. Talvez não me reconheças. Perdi muitos quilos. Ganhei cicatrizes por me ter envolvido com quem não devia. Se não me quiseres, cavarei um buraco com a minha picareta de estimação e enroscar-me-ei na lama como uma lagarta.»