quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Ela não existe





Sempre que pensas nela, sorris, porém, depois da humilhação, não há nenhuma hipótese de reerguer a casa. Pensas: tenho a coragem necessária, tenho os meios, é só pegar no telefone, marcar os números e falar. Ganhas coragem. Respiras. O oxigénio a entrar. Os pulmões cheios de ar. Os dedos tocam nas teclas do telefone e insuflam-se de energia. Desligas o pensamento. O apito do telefone vibra-te na testa, acerta-te com estrondo na pele e rasga-ta. É o pretérito perfeito a voltar ao presente. És o coveiro com a pá na mão a desenterrar o morto. A pá a escavar cada vez mais fundo até bater no caixão. O receio de encontrar o cadáver. Desenterra o cadáver. A cara do morto. O som do telefone no ouvido a fazer eco no cérebro transformado em vale do silêncio. Esperas por uma voz. A voz que não atende e que traz ansiedade. Dizes: atende, atende, atende rapariga dos cabelos encaracolados, faz-me o sorriso da adolescência e garante-me, nem que seja por apenas cinco minutos, a felicidade, não te negues, acorda e atende. O passado não atendeu o telefone e, por isso, consideras que de nada valeu o esforço que fizeste para reactivar os nós antigos. Sempre que pensas nela, sorris, mas agora choras, enervas-te, enfureces-te contra a nojenta da fêmea que não te atendeu a chamada. Ainda bem que existe a ira, pensas, sempre me impede de voltar a fazer tristes figuras. A ira que te leva a procurar todas as mulheres e a levá-las para a cama. O desejo de apagar uma humilhação que só tu conheces, uma vergonha interior que mais ninguém vê, mas que te inibe, que te faz sentir inferior. Todas as mulheres que vês na rua são presas fáceis para uma língua mentirosa. Aproveita a ira para manipular. Uma mulher. Cama com ela. Outra vez. Cama. Fúria na almofada. Estrondo na face. Cuspidela na tromba. Adeus, boa noite, passe bem. No peito que havia saudade surgiu a ira. Amanhã, voltará a saudade. Pegarás novamente no telefone. O número dela como grãos de areia nos teus olhos. O som do telefone. Um toque, dois toques, mil toques, cem mil toques, dez milhões de toques. A cera da vela derrete para cima da mesa, a luz apaga-se, e estás sozinho na sala, abandonado. Tens o telefone na mão. Preparas-te para tentar falar com ela. Uma epifania: não vale a pena, é escusado, mesmo que fales com ela, sentir-te-ás sozinho. Ela nunca existiu. Sentias-te apaixonado mas ela era apenas uma imagem, qualquer coisa que imaginaste. Ela não existe. Ouve. Ela atende e a voz não te diz nada.